Jane Luíza N. Fernandes; Wagner Wollinger; Bruno C. Garrido
Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Brasil
Corresponding author
Bruno Carius Garrido
ORCID 0000-0001-5068-9879
e-mail: garridobrunoc@gmail.com
First Submission on 1/23/2019
Last Submission on 1/25/2019
Accepted for publication on 4/3/2019
Published on 8/20/2019
ABSTRACT
Laboratory medicine results influence a high percentage of all clinical decisions. Globalization requires that laboratory medicine results should be transferable between methods in the interests of patient safety. International collaboration is necessary to deliver this requirement. That collaboration should be based on traceability in laboratory medicine and the adoption of higher order international commutable reference materials and measurement procedures. Application of the metrological traceability chain facilitates a universal approach. The measurement of serum cholesterol and blood HbA1c serve as examples of the process of method standardization where an impact on clinical outcomes is demonstrable. The measurement of plasma parathyroid hormone and blood HbA2 serve as examples where the current between method variability is compromising patient management and method standardization and/or harmonization is required. Challenges to the widespread adoption of traceability in laboratory medicine include the availability of reference materials and methods; geographical differences; the use of variable units; complex analytes and limited global coordination. The global collaboration requires the involvement of several different stakeholder groups ranging from international experts to laboratory medicine specialists in routine clinical laboratories. A coordinated action plan is presented with actions attributable to each of these stakeholder groups.
Keywords: chemistry clinical; patient care; laboratory test.
RESUMO
Os resultados da medicina laboratorial influenciam uma alta porcentagem das decisões tomadas pelos médicos. A globalização requer que os resultados obtidos por métodos diferentes sejam concordantes, garantindo a segurança do paciente. É necessário haver colaboração internacional para difundir essa exigência. Essa colaboração deve basear-se na rastreabilidade da medicina laboratorial, bem como na adoção de procedimentos de medição e materiais de referência de alta hierarquia metrológica e que sejam comutáveis internacionalmente. A aplicação da cadeia de rastreabilidade metrológica facilita essa abordagem universal. A quantificação de colesterol no soro e Hemoglobina sanguínea A1c (HbA1c) no sangue serve como exemplo do processo de padronização de métodos com impacto demonstrado nos resultados clínicos. Por outro lado, a quantificação de paratormônio (PTH) e hemoglobina A2 (HbA2) no sangue revela a variabilidade entre os métodos atualmente em uso, que compromete o tratamento do paciente e demanda, portanto, a harmonização e/ou padronização dos métodos. Os desafios à difusão da rastreabilidade em medicina laboratorial incluem fatores como disponibilidade de materiais e métodos de referência, diferenças geográficas, uso de unidades de medida variadas, ensaios de analitos complexos e coordenação mundial limitada. Uma colaboração abrangente requer o envolvimento das partes interessadas no âmbito mundial, desde especialistas gerais a aqueles com particular experiência em medicina laboratorial, com vivência em laboratórios clínicos de rotina. Um plano de coordenação é apresentado neste artigo com ações atribuídas a cada um dos envolvidos.
Palavras-chave: plano de ação; comutatividade; padronização; rastreabilidade.
INTRODUÇÃO
Este artigo é uma tradução do inglês para o português(1).
A medicina laboratorial é uma especialidade clínica essencial para fornecer aos usuários informações essenciais para prevenção, diagnóstico, tratamento e gerenciamento da saúde e doença. Seus resultados influenciam um percentual alto de decisões clínicas na assistência à saúde. Isso mostra que os especialistas em medicina laboratorial detêm uma responsabilidade ética e profissional na execução de um serviço de alta qualidade, ajustado às necessidades dos pacientes(2).
Um objetivo do sistema da qualidade cada vez mais importante é garantir que os resultados dos exames do paciente sejam rastreáveis (equivalentes) entre diferentes métodos, laboratórios e sistemas de assistência à saúde, tanto ao longo do tempo quanto em localizações diferentes(3). A harmonização dos resultados dos exames está sendo alcançada pelo processo de boas práticas na rastreabilidade. O objetivo final da harmonização é prover resultados de exames que sejam exatos, seguros para tomadas de decisão e equivalentes, que poderão melhorar o prognóstico e a segurança do paciente. A harmonização em medicina laboratorial tem um escopo amplo – pode ser aplicada ao processo completo dos laboratórios, incluindo pedidos, amostras, medições e laudos(4). Todas essas dimensões da harmonização demandam o envolvimento ativo em nível local, nacional e internacional(5).
No âmbito mundial, a rastreabilidade concentra-se na redução da variabilidade entre métodos, uma área importante da ciência que costuma ser pouco compreendida pelos especialistas em ensaios clínicos(6). O alcance da rastreabilidade é uma atividade que demanda cooperação mundial das múltiplas partes interessadas, envolvendo metrologistas, organizações internacionais de normalização, especialistas clínicos e científicos do corpo profissional internacional, reguladores de assistência médica e a indústria de diagnósticos in vitro (DIV), responsável pela fabricação e comercialização de sistemas de reagentes de diagnóstico. O Comitê Colaborativo para Rastreabilidade em Medicina laboratorial [( JCTLM) – do inglês Joint Committee for Traceability in Laboratory Medicine] foi estabelecido para coordenar as atividades das partes interessadas, fornecer suporte educacional sobre rastreabilidade e estabelecer e manter uma base de dados de materiais de referência, métodos de referência e laboratórios de referência(7).
Este artigo de opinião tem o propósito de explicar a rastreabilidade em medicina laboratorial em termos práticos e esclarecer a importância da sua contribuição no alcance da exatidão dos resultados dos exames dos pacientes.
A IMPORTÂNCIA DA REDUÇÃO DA VARIABILIDADE ENTRE MÉTODOS E ENTRE LABORATÓRIOS
Há várias razões pelas quais esforços devem ser envidados para reduzir a variabilidade entre métodos e entre laboratórios(4). Estas razões incluem:
• segurança do paciente – diferenças nos procedimentos e variabilidade de resultados colocam pacientes em risco. A harmonização dos resultados de pacientes deve contribuir para melhoria dos resultados clínicos;
• conveniência do paciente – a assistência à saúde está cada vez mais focada nos pacientes, que esperam que os resultados provenientes de laboratórios e de autotestes sejam idênticos e método-independentes. O aumento da mobilidade do paciente reforça a necessidade da redução da variabilidade em nível nacional e internacional;
• confiança pública – o público será tranquilizado ao saber que os resultados são exatos e comparáveis entre laboratórios;
• consolidação e colaboração – laboratórios que atuam em rede para assistência primária e secundária deveriam ser capazes de prover resultados similares a partir de qualquer unidade do laboratório;
• acreditação de laboratórios – a norma ISO 15189:2012, usada para acreditação de laboratórios clínicos, requer veracidade nas medições e rastreabilidade metrológica(8);
• guias clínicos com base em evidências – a implementação bem-sucedida de diretrizes de prática clínica frequentemente vincula o tratamento do paciente a valores específicos ou alterações nos resultados dos exames laboratoriais;
• governança clínica – diferenças entre resultados dos pacientes levam a dúvidas quanto à qualidade e ao profissionalismo do serviço que é prestado;
• informatização – sistemas de informação laboratoriais e hospitalares somente poderão compartilhar e transmitir informações se estiverem harmonizados;
• registro eletrônico de saúde: arquivos eletrônicos nacionais de pacientes devem permitir que os resultados harmonizados sejam inseridos a partir de qualquer laboratório, ressaltando a necessidade da equivalência dos resultados.
RAZÕES PARA OS MÉTODOS APRESENTAREM RESULTADOS DIFERENTES EM AMOSTRAS DE PACIENTES
Os pacientes, a população, os médicos e os usuários de serviços de laboratórios presumem naturalmente que todos os métodos para determinação de um único analito fornecerão o mesmo resultado para uma amostra do paciente. Para alguns analitos simples, como glicose em plasma, os resultados serão muito similares. No entanto, para analitos mais complexos, os resultados podem variar consideravelmente. Há muitas razões possíveis para essas diferenças, que serão resumidas nos “quatro Cs”:
• fabricantes (Companies) – há muitos fabricantes de métodos de DIV no mundo. Cada método pode exigir diferentes tipos de amostras, empregar modelos distintos de medição e usar sistemas de detecção próprios. A variabilidade pode também surgir em função de uma modificação local de um produto de uma companhia;
• componentes (Components) – os métodos podem usar diferentes calibradores, enzimas, substratos, antígenos, anticorpos e uma variedade de outros reagentes;
• condições (Conditions) – métodos diferentes têm variações no tempo reacional, temperatura, pH e frequentemente usam diferentes softwares e ajustes de curva para gerar resultados. Fatores pré-analíticos podem ter efeitos variados nessas condições;
• referência padronizada (Common target) – embora os métodos contemplem a influência potencial da imprecisão e da exatidão (veracidade), essa abordagem tem efeito limitado a menos que os métodos possam ser relacionados com um sistema de referência único e internacional.
A ciência envolvida nas medições é chamada de metrologia. Sabe-se que a chave para redução da variabilidade está na adoção de sistemas de referência internacionais que possibilitam o alinhamento dos diferentes métodos. Diariamente, medidas de massa (quilograma) e comprimento (metro) demonstram a importância da metrologia. A introdução de sistemas de referência na medicina laboratorial permite que os resultados possam ser rastreáveis a esses sistemas, reduzindo as variáveis responsáveis pelas diferenças nos resultados dos métodos(6).
RASTREABILIDADE EM MEDICINA LABORATORIAL
As medições envolvem:
• uma propriedade mensurável, conhecida por grandeza (por exemplo, concentração);
• a definição do mensurando – a grandeza que se pretende medir. A descrição do mensurando deve incluir a matriz (por exemplo, plasma), o componente (analito) de interesse e a sua concentração;
• as unidades nas quais o mensurando será medido. A rastreabilidade metrológica requer que o sistema internacional de unidades (SI) ou unidades com conversões bem estabelecidas (geralmente com a definição do mensurando para unidades de massa e molar) sejam usados;
• a incerteza com a qual a medição pode ser feita. Incerteza de medição é um conceito que está sendo melhor compreendido e vem ganhando apoio(9).
A rastreabilidade metrológica é a propriedade de um resultado de medição pela qual tal resultado pode ser relacionado com uma referência por meio de uma cadeia ininterrupta e documentada de calibrações. Os princípios de um sistema de medição de referência para estabelecer a rastreabilidade metrológica estão descritos no documento ISO 17511:2003(8) e nos artigos de revisão escritos a partir dele(6, 10, 11). Os componentes de um sistema de medição de referência são os materiais de referência (calibradores) e os procedimentos de medição (métodos), ambos existentes em diferentes níveis hierárquicos.
MATERIAIS DE REFERÊNCIA
• Material de referência primário: material que contém o analito que será determinado com pureza definida e que tenha sido caracterizado por métodos físico-químicos. Os materiais de referência primários são preparados por institutos nacionais de metrologia e laboratórios de referência que possuem acreditação para essa atividade(12). Apresentam certificados que relatam rastreabilidade a uma unidade do SI, pureza, estabilidade e homogeneidade(13).
• Calibrador primário: padrão de medição com valor atribuído, usando um procedimento de medição de referência primário. Geralmente, apresenta-se em solução aquosa com uma unidade de concentração definida no SI e uma pequena incerteza de medição.
• Calibrador secundário: material produzido em matriz semelhante à amostra (por exemplo, soro), com valor atribuído para uma grandeza e incerteza de medição. A atribuição de valor é feita usando um procedimento de medição de referência secundário. Calibradores secundários podem ser usados pelos fabricantes de métodos de DIV para calibrar seus procedimentos de medição.
• Calibrador de consenso internacional: usado como calibrador quando não há disponibilidade de calibrador secundário. Não é rastreável ao SI e deve ser tratado como um padrão de medição reconhecido internacionalmente, com valor atribuído em unidades arbitrárias ou em outras unidades de acordo com os protocolos desenvolvidos por grupos especializados.
• Calibrador dos fabricantes: produzido nas instalações do fabricante (in house), cujo valor foi atribuído usando um procedimento de medição do fabricante. Pode ser um calibrador principal ou um calibrador comercial.
Procedimentos de medição
• Procedimento de medição de referência primário: define a ordem metrológica mais alta. Produz um valor associado a uma incerteza de medição baixa e com rastreabilidade metrológica a uma unidade do SI, sem usar um material de nível mais baixo na hierarquia de calibração. Na medicina laboratorial, é comum empregar a espectrometria de massas por diluição isotópica como procedimento de medição de referência primário.
• Procedimento de medição de referência secundário: usado para atribuir valor a um calibrador secundário produzido em matriz semelhante à amostra real. Procedimentos de medição de referência secundários geralmente empregam um princípio de medição diferente do usado pelo procedimento de medição de referência primário.
• Procedimento de medição de consenso internacional: usado na falta de calibradores secundários com o objetivo de promover aceitação internacional de um único sistema de medição de referência para um mensurando. Esse tipo de procedimento também pode definir unidades fora do SI para alguns mensurandos, como atividade enzimática.
• Procedimento de medição do fabricante: um fabricante de método de DIV pode ter dois métodos desse tipo para um mensurando específico. Um deles será usado na atribuição de valor aos calibradores principais, enquanto o outro, para atribuir valores aos calibradores comerciais.
CADEIA DE RASTREABILIDADE METROLÓGICA
A relação entre os componentes de um sistema de medição de referência descreve a cadeia de rastreabilidade metrológica(14). A Figura 1 mostra essa cadeia com procedimentos de medição e materiais de referência de hierarquia metrológica mais alta do topo da figura até os de hierarquia mais baixa, apresentados na base. Essa hierarquia é representada pelo aumento da seta de “rastreabilidade metrológica”. O declive na cadeia de rastreabilidade é acompanhado pelo aumento da incerteza de medição, como representado pela seta para baixo.
FIGURA 1 − Cadeia de rastreabilidade metrológica Adaptado de ISO 17511:2003(14).
A rastreabilidade de um determinado resultado de medição depende da existência de uma cadeia ininterrupta de procedimentos de medição e/ou materiais de ordem mais alta. A efetividade da cadeia ininterrupta requer materiais comutáveis e imprecisão suficientemente baixa em cada etapa. No caso de moléculas estruturalmente simples, como muitas que são rotineiramente medidas em química clínica, é possível ter uma cadeia ininterrupta completa para procedimentos de medição de referência primários e materiais de referência primários. Mesmo para algumas moléculas de proteínas é possível alcançar uma rastreabilidade metrológica completa usando um único peptídeo marcador como material de referência primário. As determinações de colesterol no soro e hemoglobina sanguínea A1c (HbA1c) no sangue serão apresentadas abaixo como exemplos de rastreabilidade completa.
Para muitos materiais biológicos, incluindo proteínas complexas e vírus, não é possível preparar calibradores secundários. Nessas circunstâncias, os calibradores de consenso internacional são adotados como o material disponível de mais alta ordem metrológica.
PADRONIZAÇÃO E HARMONIZAÇÃO DE MÉTODOS
Os termos padronização e harmonização, quando aplicados a métodos, são geralmente usados como intercambiáveis, o que pode gerar dúvidas entre especialistas em medicina laboratorial e usuários desses serviços. A norma ISO 17511:2003 reconhece cinco categorias de sistemas de medição de referência, dependendo da hierarquia metrológica dos procedimentos e materiais que estão disponíveis(14). A interpretação mais simples desta categorização é: a rastreabilidade metrológica que inclui um procedimento de medição de referência resultará em padronização do método, enquanto a rastreabilidade a um calibrador de consenso internacional ou a materiais de fabricantes resultará em harmonização. Cabe ressaltar que a ISO 17511:2003 está em revisão e a norma atualizada poderá adotar uma categorização diferente.
COMUTATIVIDADE DE MATERIAIS DE REFERÊNCIA
Para ser útil na prática clínica, é necessário que um material de referência se comporte, diante de procedimentos de medição, da mesma maneira que o analito em uma amostra clínica real. Essa avaliação é feita pela análise de um conjunto de amostras reais junto com os materiais de referência, utilizando dois procedimentos de medição diferentes, geralmente um procedimento de referência e um procedimento de rotina.
Uma relação linear será exibida em um gráfico construído a partir dos resultados dos dois procedimentos de medição obtidos para amostras clínicas reais. Ao plotar os resultados dos materiais de referência comutáveis nesse gráfico, observa-se a continuidade dessa relação linear(15, 16). O que não é verificado ao plotar os dados de um material de referência não comutável. Estes não seguem a linearidade apresentada para as amostras clínicas reais, invalidando a cadeia de rastreabilidade metrológica e podendo gerar erros nos resultados dos pacientes, quando utilizados em análises clínicas.
A comutatividade não se aplica apenas a materiais de referência. Amostras usadas em esquemas de avaliação externa da qualidade (EAEQ1) devem comportar-se em procedimentos de medição de rotina como se fossem amostras clínicas, a fim de se comparar o desempenho de diferentes procedimentos de medição de rotina para o mesmo mensurando.
FONTES DE MATERIAIS DE REFERÊNCIA E PROCEDIMENTOS DE MEDIÇÃO DE REFERÊNCIA
O JCTLM mantém uma base de dados de materiais de referência, procedimentos de medição de referência e laboratórios de referência(17). Critérios rigorosos são exigidos para inclusões no banco de dados do JCTLM, incluindo evidências de comutatividade de materiais de referência e incerteza de medição. O comitê de especialistas em padronização biológica da Organização Mundial da Saúde (OMS) mantém um catálogo de calibradores de consenso internacional para produtos sanguíneos e padrões biológicos(18).
ESTUDOS DE CASOS PARA DEMONSTRAR A IMPORTÂNCIA DA RASTREABILIDADE EM MEDICINA LABORATORIAL
Colesterol sérico
O colesterol em nível alto no soro é um fator de risco bem conhecido para doenças cardiovasculares. Há muitas diretrizes de práticas clínicas relacionando o tratamento do paciente com resultados específicos de colesterol sérico. Tais diretrizes somente serão válidas se os diferentes métodos usados para determinação de colesterol gerarem os mesmos resultados. A padronização de métodos de determinação de colesterol no soro com rastreabilidade completa foi estabelecida há mais de 20 anos(19), sendo formada uma rede de laboratórios de referência internacionais(20). Consequentemente, a variabilidade entre os métodos de determinação de colesterol sérico é menor que 5%, evidenciando a existência de uma padronização universal. A capacidade de quantificação de colesterol sérico com exatidão tem facilitado o uso otimizado de estatinas, que tem contribuído para a redução drástica de mortes por doenças coronarianas(21). Além disso, o programa de padronização de colesterol demonstrou boa relação custo-benefício.
HbA1c
A HbA1c é uma forma glicada da hemoglobina que está sempre presente no sangue. Sua concentração é bem estabelecida como analito-chave para o monitoramento em longo prazo de diabetes mellitus. Uma melhora clínica do paciente é observada quando a concentração de HbA1c diminui, aproximando-se da concentração sanguínea normal. Em vista disso, um vasto número de determinações de HbA1c é feito ao redor do mundo, usando muitos métodos diferentes. Esses métodos costumavam mostrar grande variabilidade quando, em 2004, a divisão científica da Federação Internacional de Química Clínica e Medicina Laboratorial (IFCC) apresentou seu procedimento de medição de referência(23), que foi seguido por uma rede internacional de laboratórios de referência(24). Uma declaração de consenso internacional recomendando o uso de métodos para determinação de HbA1c alinhados à IFCC foi emitida e adotada. Consequentemente, a variabilidade entre métodos para determinação de HbA1c em laboratórios hospitalares está atualmente em torno de 5%, conforme resultados dos EAEQ. Essa melhora de desempenho levou a OMS a recomendar que as determinações de HbA1c fossem feitas usando métodos alinhados à IFCC, tanto para diagnosticar quanto para monitorar o diabetes(26). Percebendo a necessidade de determinações de HbA1c mais confiáveis, um grupo de especialistas desenvolveu requisitos de qualidade para avaliar a adequação dos métodos utilizados para esse fim.
Nos dois exemplos citados, milhões de pacientes em torno do mundo têm se beneficiado com a melhor assistência clínica resultante da padronização dos métodos atingida pela rastreabilidade metrológica em nível mundial.
ESTUDOS DE CASOS PARA DEMONSTRAR A NECESSIDADE DA RASTREABILIDADE EM MEDICINA LABORATORIAL
PTH no plasma
O PTH intacto é um aminoácido de 84 peptídeos cuja atividade biológica reside nos 34 aminoácidos da extremidade N-terminal. Tanto o PTH 1-84 quanto o PTH 1-34 têm tempos de meia-vida curtos (2-4 min) no plasma humano. Por outro lado, fragmentos de PTH C-terminais que surgem por clivagem do PTH-84 apresentam tempos de meia-vida muito mais longos no plasma, especialmente em pacientes com doença renal crônica. O PTH é usado para diagnosticar hiper e hipoparatiroidismo, mas seu uso mais frequente é na avaliação de risco e no monitoramento do tratamento de osteodistrofia renal em pacientes com insuficiência renal. Nesta última aplicação, o desafio é determinar a concentração do PTH intacto e bioativo na presença de concentrações muito maiores de fragmentos C-terminais biologicamente inertes(28).
No plasma, o PTH é geralmente medido usando ensaios imunométricos de dupla identificação. A especificidade dos ensaios é influenciada pela combinação de anticorpos usada. Dados provenientes de EAEQ demonstram uma diferença de três vezes nos resultados de PTH obtidos a partir dos ensaios amplamente disponíveis. Essas diferenças podem ser atribuídas a uma gama de fatores, incluindo variabilidade pré-analítica e calibração, bem como heterogeneidade molecular. Consequentemente, resultados de PTH não são comparáveis entre ensaios, e a interpretação incorreta dos exames de PTH põe em risco a segurança do paciente(30).
Ao identificar o risco aos pacientes, a recomendação em curto prazo é assegurar que limites de ação específicos para cada ensaio sejam usados. No longo prazo, uma parceria mundial liderada pela IFCC está trabalhando para produzir materiais de referência e um procedimento de medição de referência para a padronização de métodos de determinação de PTH.
HbA2
A HbA2 é uma variante normal da hemoglobina A que consiste de duas cadeias α e duas cadeias δ(α2δ2). Está presente em quantidades pequenas no sangue da população adulta. Sua importância biológica é incerta. A concentração de HbA2 pode ser aumentada nos casos de betatalassemia ou em indivíduos que são heterozigotas para o gene da betatalassemia.
Consequentemente, existem diretrizes de práticas clínicas que relacionam o diagnóstico da talassemia com valores determinados de HbA2. Por exemplo, o Reino Unido recomenda um limite para HbA2 de 3,5% como ponto de ação no diagnóstico de carreadores de betatalassemia(31).
A variabilidade entre métodos para determinação de HbA2 é grande devido à falta de padronização(32). Por isso os resultados de HbA2 não são comparáveis entre métodos e há risco de erro de classificação do paciente quando se utiliza concentração de corte única. Com o intuito de resolver o problema, um projeto foi iniciado para reduzir a variabilidade entre os métodos utilizados para determinação de HbA2(33).
Nos dois exemplos mencionados, um grande número de pacientes em torno do mundo corre o risco de erro de diagnóstico em consequência da variabilidade entre métodos, resultante da ausência de materiais de referência e/ou procedimentos de medição de referência.
DESAFIOS NA IMPLEMENTAÇÃO DA RASTREABILIDADE EM MEDICINA LABORATORIAL EM NÍVEL MUNDIAL
Diferenças geográficas
A ampla disponibilidade de comunicação eletrônica rápida oferece a possibilidade de harmonização mundial na área de medicina laboratorial(4). No entanto, algumas barreiras devem ser ultrapassadas para viabilizar essa prática, incluindo:
• dificuldades de linguagem;
• falta de compreensão da rastreabilidade em medicina laboratorial;
• produtores locais e regionais de métodos que não podem se subscrever às normas internacionais;
• requisitos regulatórios divergentes para métodos de medicina laboratorial;
• falta de adoção de diretrizes de práticas clínicas;
• pressões financeiras que podem comprometer a qualidade dos resultados em medicina laboratorial.
Falta de uniformidade nas unidades
Em muitas partes do mundo, resultados de medicina laboratorial são expressos em unidades convencionais em vez de unidades do SI, mesmo nos casos em que é possível definir o mensurando em unidades do SI e desenvolver materiais de referência e procedimentos de referência primários. Em alguns países, unidades do SI e unidades convencionais são usadas por diferentes laboratórios. Nas duas circunstâncias é introduzida outra fonte de variabilidade. Como a rastreabilidade em medicina laboratorial tem ganhado força, a uniformização de unidades para relatar resultados em nível nacional e internacional torna-se mais necessária, reforçando a relevância das unidades do SI.
Analitos complexos
Conceitualmente é simples pensar em rastreabilidade em medicina laboratorial ao quantificar uma substância pura, como a glicose, no plasma sanguíneo. A hierarquia dos procedimentos e materiais de referência, nesse caso, é uma sequência lógica. Por isso, não é surpreendente que os primeiros e mais numerosos mensurandos para os quais a rastreabilidade foi estabelecida sejam provenientes da química clínica, que dispõe da substância quimicamente pura e de metodologias químicas e físicas definidas. No entanto, muitos biomarcadores clinicamente importantes são estruturalmente mais complexos e alguns podem não existir como uma entidade única. Por exemplo:
• proteínas complexas, incluindo glicoproteínas;
• vírus e bactérias que podem ser encontrados em cepas diferentes e mutantes;
• ácidos nucleicos que podem envolver sequências e iniciadores diferentes.
Os métodos para determinar esses analitos complexos geralmente se baseiam em procedimentos biológicos, incluindo aqueles fundamentados na ligação de anticorpos com antígenos ou ácidos nucleicos, cuja incerteza de medição pode ser relativamente alta.
Há uma percepção de que não é possível estabelecer rastreabilidade para tais analitos desafiadores. No entanto, como descrito anteriormente, pode-se reduzir a variabilidade entre métodos ao adotar calibradores de consenso internacional e/ou procedimentos de medição de consenso internacional. A chave para a introdução da rastreabilidade nessas circunstâncias depende da liderança mundial.
Coordenação mundial
Não há uma lista completa de biomarcadores utilizados em medicina laboratorial. Uma base de dados nacional da Finlândia sugere que pode haver até 4000 analitos (P Laitinen, comunicação pessoal). Em janeiro de 2017, a base de dados do JCTLM(17) continha registros de:
• 293 materiais de referência certificados;
• 180 métodos de referência cobrindo 80 analitos;
• 146 serviços de medição de referência cobrindo 39 analitos.
No mesmo mês, o catálogo de calibradores de consenso internacional para produtos sanguíneos e padrões biológicos, do comitê de especialistas em padronização biológica da OMS, continha em torno de 300 registros, com algumas sobreposições com a base de dados do JCTLM. Essas duas fontes de materiais e métodos de referência juntas contabilizam aproximadamente 15% do número total de métodos usados em medicina laboratorial, embora os métodos para a maioria dos analitos determinados com mais frequência estejam incluídos, demonstrando a necessidade de uma iniciativa mundial coordenada para dar suporte aos muitos métodos para os quais não há rastreabilidade no momento. Iniciativa esta que já possui metodologia descrita(34, 35).
PARTES INTERESSADAS NA IMPLEMENTAÇÃO DA RASTREABILIDADE EM MEDICINA LABORATORIAL
Os promotores da viabilização da rastreabilidade na rotina da medicina laboratorial estão descritos na Figura 2.
A iniciativa começa na base do triângulo com o reconhecimento internacional da necessidade de rastreabilidade de um analito específico. Posteriormente, organizações internacionais e nacionais de normalização e institutos de metrologia são responsáveis pela produção e listagem dos materiais e procedimentos de referência disponíveis. De posse desses materiais e métodos, os fabricantes de métodos de DIV poderão produzir os métodos que serão disponibilizados para uso em rotina, sendo seu desempenho avaliado nos EAEQ.
PLANO DE AÇÃO PARA IMPLEMENTAR A RASTREABILIDADE EM MEDICINA LABORATORIAL EM NÍVEL MUNDIAL
Um plano de ação coordenado é necessário para a implementação no âmbito mundial da rastreabilidade em medicina laboratorial. Isso fica comprovado na Figura 2, que mostra as ações atribuídas a cada um dos grupos das partes interessadas:
FIGURA 2 − Partes interessadas no alcance da rastreabilidade em medicina laboratorial Adaptado de White GH. Ann Clin Biochem. 2011; 48: 393-409.
1. comitês de especialistas clínicos e de laboratórios reconhecidos internacionalmente:
– desenvolver um consórcio internacional para comunicação e compartilhamento de informações sobre a necessidade de rastreabilidade(34, 35);
– priorizar e selecionar os métodos que mais precisam de harmonização e convidar grupos de especialistas para que se envolvam em projetos de harmonização.
2. Institutos nacionais de metrologia/sociedades internacionais:
– desenvolver materiais de referência comutáveis e procedimentos de medição para analitos específicos utilizando a hierarquia mais alta que estiver disponível na cadeia de rastreabilidade; – publicar os resultados dos projetos de harmonização em revistas científicas em que o artigo é revisado por especialistas da área antes da sua publicação.
3. Banco de dados mundial de métodos e materiais de referência:
– disponibilizar listas e catálogos, acessíveis gratuitamente, dos métodos e materiais de referência disponíveis que estão de acordo com os requisitos estabelecidos, incluindo informações sobre comutatividade e incerteza de medição(17, 18);
– fornecer materiais de suporte educacional para difundir a importância da rastreabilidade em medicina laboratorial.
4. Organismos de normalização e acreditação e sociedades científicas:
– incluir o assunto rastreabilidade em medicina laboratorial nos treinamentos de especialistas em laboratórios clínicos e nas normas exigidas para sua acreditação;
– fornecer materiais de suporte educacional para difundir a importância da rastreabilidade em medicina laboratorial.
5. Fabricantes de métodos de DIV:
– produzir métodos de DIV que estejam em conformidade com a mais alta ordem de rastreabilidade disponível;
– fornecer detalhes da cadeia de rastreabilidade dos resultados para cada método no material que contém suas instruções de uso.
6. Provedores de EAEQ:
– promover o uso nas EAEQ de materiais comutáveis e que possuam valores atribuídos;
– fornecer suporte educacional sobre rastreabilidade para os participantes de programas de EAEQ.
7. Especialistas na rotina da medicina laboratorial:
– conhecer a cadeia de rastreabilidade dos resultados para cada método usado e compreender a incerteza de medição envolvida;
– capacitar funcionários e usuários sobre rastreabilidade em medicina laboratorial, destacando sua importância na assistência à saúde.
CONFLITO DE INTERESSES
A(s) organização(ões) financiadora(s) não participara(m) do desenho deste estudo, da coleta de dados, da análise e da interpretação de dados, além da escrita do relatório ou da decisão de submeter o artigo para publicação.
AGRADECIMENTOS
Este artigo foi publicado com a gentil permissão da editora De Gruyter. De Gruyter e os editores da fonte original, Clinical Chemistry and Laboratory Medicine, não endossaram ou aprovaram o conteúdo desta tradução.
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1Nota da tradução: esquemas de avaliação externa da qualidade são programas de ensaios de proficiência com uma finalidade bem definida. Em muitos países, a participação em tais programas é compulsória.